“As graças a Deus dava, e razão tinha.”- Luís Vaz de Camões

Hoje falei de Camões aos alunos. Alunos de outras escolas, de outros professores, com uma missão tão hercúlea como a minha. Olha que não são fáceis, são especiais, não estão habituados a grandes discursos, nem a grandes eventos, muito menos a pessoas grandes, disse-me a colega. Compreendi, mal cheguei, que também não estavam habituados a aceitar os homens do presente, por isso os homens do passado estariam em piores lençóis. Se os avós, os educadores e até os pais já são velhos, então que nome terá, para eles, uma pessoa nascida há 500 anos?

Quem me conhece sabe que o meu entusiasmo me impulsiona, não vacilo perante os desafios. Por isso, muni-me da minha arte de bem falar e de bem seduzir, comummente designada como retórica, e acostumada a contextos idênticos, comecei por lhes falar, não do nascimento, mas da morte. Comecei por lhes dizer que Camões morreu completamente sozinho, abandonado por um país que ele tanto amou e levou a todos os cantos do mundo; depois do seu regresso à pátria em 1569, graças ao seu amigo Diogo do Couto que o encontrou em Moçambique, na total penúria, e que pagou a sua viagem de regresso à pátria, para garantir algum sustento, andava o escravo Jau a pedir “uma esmola pelo amor de Deus, para o poeta Luís de Camões”. É que a tensa de 15 mil réis, que lhe fora atribuída pelo rei D. Sebastião, a quem o poeta dedica a sua epopeia Os Lusíadas, publicada em 1572, era paga tarde e a más horas. Não perdi a oportunidade para replicar que, apesar de tudo, hoje a situação é diferente, graças aos apoios e aos subsídios muitas vezes até injustamente atribuídos. E muitos deles foram recebidos de braços abertos neste país, não como estranhos, mas como irmãos. Falei-lhes na dor certa de uma mãe ao ver sepultado o seu filho na Igreja de Santa Ana, apenas envolto num lençol. Atitude correta, ironizo, desta forma poderia a terra devorar bem mais depressa um corpo que não tivera a capacidade de acompanhar a elevação de um espírito tão sublime. Retorqui, ainda a propósito, que, de acordo com os direitos humanos, todos temos direito a uma morte digna, pelo menos a uma simples caixa que esconda a nudez da morte. Morreu num dia numerologicamente visto como um início de algo: 10 de junho, mas que ninguém viu. O país andava distraído (malvada distração, sussurro agora só para mim, não seria de bom tom praguejar à frente dos jovens – malvada distração, repito, que fatidicamente se prolonga no tempo), distraído com algumas vaidades e preocupado em fazer engordar algumas barrigas, e em alimentar a ignorância, por isso só acordou trezentos anos depois, quando colocou as suas ossadas, que nem seriam as suas, num túmulo, no Mosteiro dos Jerónimos, que é hoje orgulho nacional. Embora não tivessem percebido o sarcasmo, acrescentei que também hoje a ignorância é subtilmente aplaudida e cresce como erva ruim.

Celebramos este ano (Camões teria nascido em 1524 ou 1525) o resultado de anos e anos de estudo, de luta, de sacrifício e de miséria; mas também de desconsideração, que o poeta condena vivamente no final de alguns cantos da sua epopeia. E hoje também este facto é fado nacional, pois só se dá conta que um poeta ou um escritor existe, quando deixa de existir. Mais vale tarde do que nunca, na verdade, continuo a ironizar.

Levei Camões, digo, às escolas. Li as lágrimas e o sofrimento, mas também as loucuras, os amores, os ideias, que ele deixou plasmados nos seus poemas. Convidei os alunos a repetir a aventura dos descobrimentos; a viver as fomes e as doenças; a não temer o pobre do Adamastor, tão facilmente enganado pela coragem dos navegadores; a salvar a nado algumas palavras afogadas no naufrágio do rio Mekong, onde pereceu a amada do poeta, a bela Dinamene; a admirar as ninfas na Ilha dos Amores, que hoje passeiam com naturalidade, por todo o lado.

Valeu a pena? Tenho a certeza que sim. Citando Fernando Pessoa, “Tudo vale a pena, se a alma não é pequena”. Semeei. Se houve alguns que não foram diferentes, pois deram continuidade ao hábito de se esconder nos telemóveis, outros houve que fizeram a diferença, pois escutaram-me ativamente interessados. O seu olhar penetrante e os seus sorrisos de aceitação envergonhada salvaram o dia. Tenho a certeza de que são esses olhares e esses sorrisos, por muito escassos que sejam, que valem a pena, que continuam a nutrir o dia de muitos professores que, no presente, procuram, não sem esforço, preparar o futuro de uma geração aparentemente apática.