Na primavera a Natureza chama por todos. Cheiros, cores, sabores revelam-se magicamente, vaticinadoras de uma alegria aprisionada durante tanto tempo. E como a nossa memória é inteligente, projeta-se para a frente, para os dias que se aproximam, e esquece os dias de chuva e de frio que são, quer queiramos quer não, pouco amados, embora sejam justificação acrescida para a boa disposição, que é comum a todos os seres.
Assim sendo, e porque o tempo convida, o dia foi de entrega total ao exterior. O sol brilhava, o céu resolveu, para gáudio de todos, plagiar o azul do mar, cenário ideal para os amantes da descontração e da liberdade; nem a brisa que, de vez em quando, levantava os chapéus desprevenidos e obrigava a apertar um pouco mais os casacos contra os corpos ainda pouco afeitos ao quente, afastava a pequena multidão que passeava descontraída e enamorada da paisagem, já conhecida, tão amada.
Marcámos encontro com uns amigos, as alegrias devem efetivamente ser partilhadas., os interesses duplicados. O passeio esperava-nos. Depois do café, começámos a caminhar à beira-mar. E obviamente falámos da Páscoa, já tão próxima; do cansaço que mora connosco porque muitas vezes já a o sol nos afagou; das crianças que já partiram, homens feitos com preocupações agora diferentes, criadores já do seu próprio núcleo; inevitavelmente da política e de políticos que deveriam apresentar-se como pessoas idóneas e da falácia que é perceber que estamos todos enganados – ninguém é perfeito, ninguém é perfeito, ouço. Falámos do tempo; das tempestades; das doenças; das adversidades e da sorte que tem esta gente que vive neste país à beira-mar plantado e que, apesar de pequeno e de pobre, vai vivendo, vai vivendo – ouço também. A uma dada altura sentámo-nos numas pedras um pouco rugosas, mas que rapidamente se transformaram em bancos acolhedores. Era necessário repor energias, beber água, mastigar qualquer coisa, o corpo não tem raízes na terra, como dizia a minha mãe. Era um lugar propício para o descanso. Olhei em redor. Aparentemente protegidas e encostadas às pedras, encontravam-se duas garrafas de plástico, acompanhadas, propositadamente ou não, por uns papéis; mais afastadas e dispersas, umas pontas de cigarro. Bastou uma breve exclamação para todos verem. Os temas são como as contas do rosário, de forma que o silêncio não cabia ali e aquele assunto era premente. Choveram inevitavelmente os comentários e as acusações: não pode ser, as pessoas não têm consciência nem educação, o depósito do lixo não está assim tão longe, que falta de respeito e de civismo, há pessoas que acham que mandam no mundo, há países onde há muito mais cuidado, o governo obriga, há multas, no nosso é sempre o mesmo, ensina-se a boa educação nas escolas e às vezes em casa deseduca-se, a poluição é, de facto, um monstro, há ilhas de plástico, ao longo da sua vida o homem só faz lixo, é o único ser que… Bom, imagina-se o que se seguiu. Entretanto, retomámos o percurso, embrenhados na discussão, que a tarde pedia e havia ainda ouvidos à escuta. De repente, olho para trás. E o que vejo eu? Uma das pessoas, que nos acompanhava, afastou-se um pouco, agarrou nas garrafas abandonadas e no papel e correu em direção ao depósito do lixo. Estacamos. Confesso que fiquei envergonhada. Ficámos todos.
De que nos vale levantarmos bandeiras em defesa de um ideal, de um bem maior, que a todos beneficia, se não saímos do lugar para agir? É certo que a força das palavras move mentalidades, mas a ação é o melhor ensinamento. Um pequeno gesto que se transformou num grande exemplo. Obrigada, Fernanda, porque aprendi uma lição. Acho que o mundo está à espera de um gesto nosso, por muito pequeno que seja, por muito insignificante que pareça.