Não despreze a tradição que vem de anos longínquos; talvez as velhas avós guardem na memória relatos sobre coisas que alguma vez foram úteis para o conhecimento dos sábios. Tolkien
É muito provável que a leitura deste texto seja acompanhada (na rua, no televisor, na Internet ou mesmo no rádio – meio de comunicação menos usado nos dias que correm, mas que conserva ainda a sua fidelidade à atualidade noticiosa) pelas tão anunciadas e já ansiadas festividades carnavalescas, recheadas com danças, diversão e alegria, que se estendem pelo país e pelo mundo inteiro, assumindo as mais variadas formas. A História revela-nos que elas são uma tradição de séculos, por isso é salutar dar-lhes continuidade. Vivemos tempos difíceis, terríveis mesmo, dizemos, por isso é necessário esquecer, é necessário libertar o espírito, afugentar e exorcizar os diabos interiores e exteriores, como sempre se fez. De uma maneira ou de outra, é também importante que o espírito se afadigue, preparando-se para a contenção quaresmal, depois dos excessos do gordo. Ao longo dos tempos, os homens foram-se moldando de tal modo aos rituais que toda a sua vida se organiza em torno deles. Assim sendo, e relembro, quarenta e sete dias antes da Páscoa, festejamos o Carnaval, ocorrendo o Domingo de Páscoa no primeiro domingo após a primeira lua cheia que se verificar a partir do equinócio da primavera, no hemisfério norte ou do equinócio do outono, no hemisfério sul.
Desta vez, e apesar de ter iniciado este editorial com a pertinente atualidade da tradição, não dirigirei a minha atenção para as redenções antecipadas nem sequer para as alegrias desenfreadas. Outra tradição, melhor, outro legado, me surpreendeu ontem, monopolizando completamente a minha atenção. Foi a chegada de uma caixinha de madeira, que eu imediatamente reconheci como um oratório, olvidada durante alguns anos; impelida pela minha sofreguidão da infância, abri as pequenas portas que me permitiram ver a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro com o Menino Jesus no colo. A magia, o encanto, o fascínio e o respeito tornaram-se presentes, tantos anos depois. Recordo que, nesse dia, na aldeia que me serviu de berço e de cama nos primeiros anos da minha vida, a devoção expandia-se e toda a família era bafejada pela divindade; achava que era um dia especial, porque mais próximos dos anjos, guardiões que éramos de tal preciosidade espiritual e divina. Mesmo o meu pai, sempre tão recatado e ensimesmado, aparentemente tão despojado de emoções, esculpia no seu rosto um sorriso de beatitude e ternura, quando a família se reunia para orar; a voz da minha mãe ecoava na noite como uma onda de bem-aventuranças e de bênçãos. No dia seguinte, outra família aguardava a sua visita, por isso a minha mãe era responsável pela entrega da caixinha da Nossa Senhora, como lhe chamávamos, na casa mais próxima da nossa.
Foi esta tradição que me entrou ontem em casa, pela mão do vizinho. E agradeço-lhe, não só pelo facto de trazer com ela estas memórias tão benfazejas, mas sobretudo pela confirmação de que as tradições dependem da vontade de cada um para ainda serem o que eram (ao contrário do que erradamente se divulga); e dando continuidade à boa vontade dos homens, quando eles querem, o amor é o melhor escudo de proteção contra azares, adversidades, hipocrisias e injustiças. Continuo a pensar que, apesar de o mundo se encontrar virado do avesso, comandado pela surdez de governantes mentecaptos e corruptos, concentrados exclusivamente nos seus próprios egoísmos, e esquecendo-me de que nada seriam sem os pequenos que os rodeiam, são estes pequenos gestos de partilha e de união que mantêm acesa a chama dos sentimentos que aquietam as almas.