Se, depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples.
Tem só duas datas – a da minha nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra coisa todos os dias são meus.Alberto Caeiro
Perdoem-me os leitores se regresso ao tema mais uma vez, se o assunto que me traz aqui é a arte da escrita, e particularmente a de Fernando Pessoa. Tenho celebrado o autor que considero um dos maiores representantes da língua portuguesa, tenho prestado homenagem aos seus versos, tenho divulgado a sua obra com muito agrado e sempre que encontro público aberto e recetivo apregoo o seu pensamento, muitas vezes tão badalado, mas pouco entendido. Hoje, a razão prende-se com a data da sua morte: 30 de novembro de 1935. A melhor forma de o homenagear seria escrever um longo poema, mas não tenho coragem, pois a sua possível luz seria imediatamente ofuscada pelo brilho de qualquer um dos seus versos; bastaria, por exemplo, o tão conhecido: “O poeta é um fingidor”. Poderia tentar dissecar a hercúlea questão da sua heteronímia, tão desdenhada no tempo em que viveu e hoje motivo de tanto estudo (o número de figuras associados ao poeta, entre heterónimos, semi-heterónimos, esboços de personagens, traços enigmáticos vai já em 127, sabendo que há ainda inéditos na sua arca), porém a carta a Adolfo Casais Monteiro sobre a origem dos seus heterónimos foi tão genuinamente esclarecedora que deixou confuso o amigo, os vindouros e até o próprio autor, acho, e para isso penso bastar o primeiro verso “Não sei quantas almas tenho”. Poderia falar também da sua única relação amorosa conhecida, tão serenamente revelada nas ingénuas e infantis Cartas a Ofélia, inicialmente parodiadas pela insigne literatura, como se fosse proibida a intrusão dos afetos e da linguagem da alma no grande ventre gerador de Arte, mas bastaria o verso, a frase, a máxima, como pretenderem, “Amar é cansar-se de estar só” ou “O amor é uma companhia” para me silenciar. Poderia falar ainda no seu aparente desinteresse pelas questões políticas, relacionadas com o tempo em que viveu, pois sempre se colocou à margem (o que é estranho, pois a intervenção social e ativa é quase um dever que nasce ao mesmo tempo que nasce o autor), no entanto, o que pensar quando entramos na mundividência da obra Mensagem, única obra publicada em vida e em português (fez outras publicações em inglês), de extraordinária exaltação patriótica, onde se conciliam as glórias do passado e da criação da nossa nacionalidade, a aventura prodigiosa do encontro com novos mundos, com a esperança premonitória da vinda de um Quinto Império, o Império da Espiritualidade, livre e puro, onde a Humanidade se limpará da sua desumanidade? Ficamos completamente assoberbados. Por muito que se revele há sempre mais para revelar sobre a singularidade deste génio.
Por isso, hoje, nesta manhã amena de novembro, imagino-te deitado no hospital, à procura dos óculos para descortinares, nos últimos momentos da tua vida, que contou apenas 47 anos, uma fração de segundos, comparada com a tua grandiosidade, a dor daqueles que nunca te viram passar. Hoje dirijo-me a ti, Fernando Pessoa, e alimento apenas o eterno sentimento de gratidão, pois ajudaste-me a crescer. A tuas palavras continuam vivas em mim.
Foste pouco amado, pouco reconhecido; num tempo de ingratidão e de grandes desafios culturais, procuraste lutar silenciosamente e à tua maneira, servindo-te das armas sempre disponíveis, papel e lápis, abrindo os caminhos para o crescimento e para o entendimento da alma humana. Também hoje os desafios são muitos, talvez maiores ainda. Imagino-te no meu mundo. Neste século XXI. Talvez te sentisses tão perdido como muitos de nós. Como eu.