livro Flama

“A essência da beleza é a Natureza”, Van Gogh

Nós, os que lidamos com as palavras, os que tratamos por tu os textos e as frases, sustentáculos de ideias e de ideais, e que temos como suporte do dia os enunciados orais ou escritos, servimo-nos, não raras vezes, de expressões, muitas delas engordadas pela história ou simplesmente ilustrativas de banalidades do quotidiano, no sentido de justificar situações específicas. Numa tentativa de estabelecer o paralelismo com o nosso tão conhecido Fernando Pessoa, que viveu o Modernismo português do início do século XX, tenho apresentado nas aulas o exemplo de Van Gogh, repetindo a frase “Deus fez-me pintor para gente que ainda não nasceu”, para ilustrar que tanto um como outro não passaram de autênticos desconhecidos no seu tempo, mas que hoje o mundo, o mundo em que vivemos, aplaude. Assim sendo, facilmente concluímos que podemos apreciar hoje a sua arte. O meu conhecimento sobre o pintor ficou mais aprimorado depois de, ainda na placidez das férias, ter visualizado um filme, que biografava a pessoa e a genialidade. Fiquei fascinada com a sua simplicidade, a sua transparência, só apanágio dos homens bons, embora claramente ficcionada, pois é impossível expor com detalhe a vida de alguém, seja de quem for.

Estarão, certamente, a questionar-se sobre qual o motivo que me levou a falar sobre esta personalidade tão ancestral, que nem sequer é portuguesa, e com mérito universalmente reconhecido, para regressar a este espaço do jornal, que tão afetuosamente vos abre a porta. Entenderão já a pertinência.

Van Gogh foi um pintor expressionista. Pintou a célebre natureza morta, na qual honra magnificamente os amarelos (“Pinto a luz do sol”), tão detestados na época; deu vida às paisagens que foram berço de muitas lutas pessoais, mais de lágrimas do que de sorrisos; plasmou nos quadros a essência da sua alma de artista (“Eu sou os meus quadros”). Acrescento que foi acusado de pintar a realidade distorcida. E isto aconteceu há mais de cem anos, num tempo em que a Natureza não estava ainda tão saturada nem tão conspurcada.

Agora, questiono-me. E se ele fosse vivo, se ele fosse nosso contemporâneo? O que pintaria ele? Florestas transformadas em desertos de negritude? Esqueletos de árvores a pedir clemência? Aves rebeldes a exigir justiça? Animais desesperados à procura dos seus abrigos destruídos e das suas crias indefesas? Pessoas sedentas de insubordinação a escancarar a porta enegrecida pelas chamas finalmente refreadas? Os gritos sufocados pelo ruído ensurdecedor das fogueiras? O odor a cinza e a morte?

A arte, e especificamente a pintura, tem o condão de representar a vida, a realidade, mas que seja ela também, a cada vez mais, voz de todos os seres que não merecem ser vítimas da inconsciência humana, que seja ela baluarte em defesa do Todo, que a todos pertence, que a todos a divindade deu como pilar e leito de sobrevivência. Há revoltas que não podem ser silenciadas, e esta é uma delas. Cada um de nós é responsável, mas os governantes do nosso país, de todos os países, são-no mais ainda, pois falam por nós. Representam-nos.