A paixão pela narrativa perde-se nos túneis do tempo. Ainda, de certa forma, instigada pela singularidade da época festiva tão colorida, o Natal, que acabamos de viver, onde as histórias desempenham um papel tão especial, resolvi iniciar o ano com uma história da minha autoria, que não tem título, para, desta forma, poder cada leitor nomeá-la como entender. É assim:
Num reino muito distante, vivia um mercador muito rico, conhecido pelo seu exemplo de retidão e honestidade, que passava a maior parte do tempo a viajar. A esposa, mulher admirável e muito culta, dirigia a casa, cuidava dos filhos e dos negócios da família na ausência do marido. A sua casa prosperava, os seus descendentes cresciam saudáveis e felizes. Eram dias de festa, quando o mercador regressava a casa. A maledicência é uma faúlha que, alimentada pela inveja, pode crescer desmesuradamente e arruinar a vida de pessoas inocentes. Havia nessa casa uma criada muito bela que ocultamente invejava a graça, a bondade e a riqueza da sua senhora. Tinha-se aproximado do mercador, pedindo-lhe proteção e ajuda, contudo, pretendia outros favores. Como se sentiu rejeitada, jurou que um dia tudo aquilo seria seu. Quando o mercador regressou de uma das suas longas viagens, a criada abordou-o com humildade no jardim:
– Senhor, preciso de vos falar. É um assunto muito grave.
O mercador repeliu-a, à primeira vez. Quando teve oportunidade, a criada insistiu:
– Senhor, é um assunto do vosso interesse.
O mercador recusou ouvi-la, porém, ela olhava-o de uma forma tão persistente que um dia foi vencido pela curiosidade.
– É um assunto do vosso interesse – adiantou ela. – É a vossa esposa, senhor, ela não vos é fiel.
E desfez-se em pormenores macabros e esmeradamente estudados. O homem ficou siderado. Em toda a sua vida, nunca tinha havido um indício de suspeita, nunca essa palavra tinha sido pensada, muito menos pronunciada.
– Como é que sabes? – perguntou enfurecido.
– Toda a gente sabe, senhor.
O homem empalideceu. Aquela verdade terrível e aviltante acabrunhava-o, humilhava-o, amortalhava-o. Resolveu expor-se à ignomínia e perguntou a todos os criados, a todos os amigos e conhecidos. O veneno proliferara. Todos, sem exceção, confirmaram como verdadeira a suspeita. Todos tinham ouvido, todos tinham sussurrado. Aquela certeza virulenta tinha-se espalhado e transformara-se num monstro disforme. O mercador, fiel aos seus princípios de homem honesto, verdadeiro e reto, chamou a esposa.
– Minha esposa, a partir de hoje, deixareis esta casa. Já não fazeis parte da minha dignidade. Jurei-vos fidelidade, fui fiel; jurei amar-vos, amei-vos; porém, não cumpristes o vosso dever. Na minha ausência, atraiçoastes a minha confiança.
A esposa ficou tão surpreendida com a revelação e com aquelas palavras que emudeceu. O mercador viu naquela reação a mera confirmação das suas palavras, por isso continuou, determinado.
– Abandonareis esta casa imediatamente.
Só no dia seguinte, quando se encontrou completamente desamparada no cimo de um monte, a esposa se apercebeu do que tinha realmente acontecido. Pensou tratar-se de um pesadelo, de uma loucura passageira, de uma doença. Do lugar onde se encontrava podia ver os jardins, a cúpula transparente onde namorara, durante tantos anos, as estrelas, e a casa que albergava a sua família amada. Ali se manteve, ali ficou a olhar, de longe. Veio o outono, veio o inverno, veio a primavera. Pouco a pouco, o abandono e a solidão transformaram a mulher numa estátua branca como a neve. O tempo passou e o mercador, fiel à sua responsabilidade de homem sério, continuou as suas viagens de mercador. A notícia de que a mulher continuava precisamente no lugar onde tinha sido deixada espalhou-se como o vento. Vinha gente de todos os lados para ver aquela mulher magnificamente transformada em estátua, a olhar para a sua casa e sorrindo tristemente. Um dia, o mercador passou por ali. Curioso, aproximou-se hesitante. Então, entre a sombra e a luz daquele fim de tarde, ouviu a voz da sua esposa.
– Estava à vossa espera, meu esposo. Finalmente posso partir. Quero levar comigo o meu amor e a metade do meu coração que sempre vos pertenceu.
O seu rosto iluminou-se e esfumou-se nos ares. Surpreendentemente, uma fonte de águas límpidas começou a brotar do chão, debaixo da rocha onde ela se sentara. Diz-se que eram as lágrimas que chorara sozinha e abandonada.
Esta é uma história intemporal. Hoje, vivemos, de facto, tempos muito perigosos. A qualquer momento, qualquer inverdade se pode transformar numa verdade inquestionável e correr, em breves segundos, o mundo inteiro.