livro Flama

“Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos” Fernando Pessoa

Inicialmente, o meu pragmatismo formatado recusou. Nem pensar. Ir ao Iberanime? Os meus filhos devem achar que eu não tenho juízo, ou que eu não sou a mãe deles, ou que tenho a idade deles. É certo que além de sempre me ter considerado uma mãe presente, atenta aos desafios e à novidade – estar muitas vezes entre duas gerações como sucede a muitos de nós que passamos a barreira dos cinquenta, pois está a nosso cargo, direta ou indiretamente, lidar com a geração dos nossos pais que nos puxam para o passado, associados às fragilidades inerentes à idade, e com a geração dos nossos filhos, visionários a empurrar-nos para o futuro – esse convite pareceu-me um pouco descabido. Mantive-me sempre ao lado do entusiasmo da preparação prévia das vestimentas, das experiências, das conversas que nasciam aquando das suas visitas sempre ansiadas, pois evito julgamentos quando não tenho capacidade de discursar sobre o assunto. Interesses talvez exagerados, pensava eu, por um mundo que pertence exclusivamente ao universo da ficção.

Confesso que foi a ideia de juntar a família que me levou a aceitar o convite. Uma oportunidade imperdível, pois esses encontros começam a rarear, pela simples razão de que cada um começa a ter o seu núcleo e as ligações tentaculares aumentam. É a lei da vida. E é assim a ordem normal das coisas.

Decididamente entrei num mundo diferente. Um espaço enorme abria-se à nossa frente. E gente, muita gente. Sentada, de pé, a circular apenas, a comer, a beber, a conversar, a rir. A primeira impressão foi a de ter entrado num lugar estranho, que não era o meu; depois, o império dos sentidos, dominado obviamente pela visão, desabou sobre mim, apesar de a música e de as vozes calarem todos os pensamentos e de os odores circularem à vontade, despertando apetites e vontades. Fiquei completamente desarmada, pois deparei-me de imediato com a descontração, solicitude, desinibição, naturalidade; as barreiras, os paradigmas; as hesitações, as inibições, medos e frustrações, com as quais tropeçamos todos os dias estavam banidos ali. E o mais surpreendente era a forma como as pessoas se aproximavam para se fotografarem ao lado das figuras emblemáticas e mais representativas dos seus jogos preferidos. E os abraços sucediam-se, os agradecimentos também, o respeito e a aceitação do outro, quer estivesse representando alguém, quer estivesse vestido com a naturalidade do vulgar quotidiano. E gente de todas as idades, também isso me fascinou. (E entre parêntesis tenho de dizer que a idade está dentro de cada um de nós; afinal o que é que significa ser jovem?)

Recorde-se – e agora um pouco de partilha de comunicação à mistura – o Iberanime é um festival promovido com o objetivo de dar vida à cultura japonesa do Anime e às figuras dos jogos virtuais. De menor impacto do que a Comicon, este destina-se apenas à Ibéria. Por muito que tente, seria impossível descrever o que ali se vive, o que ali se sente.
Agora que recordo esse dia e essa experiência inusitada, não consigo deixar de pensar no sorriso que se colou ao meu rosto, de enlevo e de regozijo.

Valeu a pena! É uma loucura, mas espero pelo próximo ano. Afinal, de poeta e louco todos temos um pouco, de acordo com a sabedoria popular. E todos livres para escolhermos o que quisermos.

Nota: Se Miguel Torga ou José Saramago vivessem ainda, talvez defendessem que esta é uma brilhante e inovadora forma de iberismo e de unir povos e culturas.