“O riso brota dos dentes que mordem.” Teixeira de Pascoaes

Todos dizemos e repetimos, mesmo inconscientemente, que rir é o melhor remédio. E questiono-me em consequência desta máxima: remédio para quê? Para combater aquela doença considerada de todos os séculos que é a ignorância e a estupidez? Para esconder a falta de coragem para se enfrentar a realidade cruel em que vivemos? (E poderíamos enumerar atitudes comprometedoras que todos admitem conhecer e que felizmente muitos não praticam). Para alguém se esquivar de uma pergunta para a qual não se inventou nenhuma resposta ou pura e simplesmente para se ser aceite pela massa com a qual se coabita? Ou porque o riso afasta, como se diz, as energias negativas e todos temos direito a ouvir as nossas gargalhadas curadoras?

Antes de argumentarem que há várias formas de riso, gostaria de manifestar a minha concordância e de referir ou estabelecer a distinção entre o riso como revelação honesta ou simpática da alma ( e aqui atribuir-lhe-ia com mais sobriedade o nome de sorriso, que é genuíno e autêntico, pois não são raras as vezes em que ouvimos dizer que a criança sorriu no ventre da mãe ou que uma criança de dias sorri para a mãe, reconhecendo-a) e o rir por rir, associado à crítica e à sátira maliciosa, incluindo aqui também o inevitável riso quando assistimos à queda abrupta de alguém à nossa frente. Evidentemente que há o riso da libertação, medicinal e que tem por objetivo a cura, tão divulgado e credibilizado pelas terapias modernas.

É sobre o segundo – o malicioso – que me debruçarei, pois considero que é necessário talento e inteligência perspicaz para se atingir o verdadeiro ponto do riso, ou se preferirem, o clímax do riso. Recorrendo ao universo da culinária, é o mesmo que acontece com o açúcar caramelizado, ou em ponto. Embora sem pretender fazer um longo périplo pela nossa tão rica e longa História, poderei dizer apenas que a Literatura sempre agasalhou o género satírico, uma técnica literária e artística cujo objetivo era ridicularizar um determinado tema (indivíduos, instituições, organizações, reis e estados), geralmente como forma de intervenção política ou social, no sentido de provocar uma mudança ou uma melhoria, denunciando atitudes, vícios sociais, destrutivos ou desmoralizadores, paradigmas puídos. Em suma, o humor é utilizado como veículo de alteração de costumes. Se já na Antiguidade greco-latina ele era utilizado, na Idade Média assumiu representatividade através das cantigas de escárnio e de maldizer, e logo a seguir o pai do teatro português, Gil Vicente, levou o tópico ao expoente máximo, através do seu ridendo castigat mores (a rir criticam-se os costumes). Muitos mais deveriam ser referidos, pela sua pertinência e inteligência, porém entrego-vos apenas estes nomes, conhecidos e divulgados pelos manuais da literatura: Nicolau Tolentino, Bocage, Guerra Junqueiro, Alexandre O’Neill. Dos mais atuais não falarei, obviamente, porque são por demais conhecidos por todo o tipo de público. Mas cabe-me acrescentar que esta arte, embora possa prestar homenagem a alguns que aprenderam com os clássicos e com a velha escola, as boas maneiras, esta arte, como dizia, está a ser muito maltratada. Aliás, permitam-me mesmo que diga que é vergonhosa e vil a forma como alguns comediantes, agindo como se estivessem a despir-se de preconceitos, se despem de valores eventualmente ensinados pelas gerações anteriores, família direta ou não, se expõem e expõem o que de pior têm, a sua falta de caráter. E fazem-no sem criatividade e sem arte! Acrescento que há limites para tudo, e o bom senso não deveria ser palavra vã. Não estou a defender que no meu tempo é que era bom e honesto e sério, porque este também é o meu tempo, mas não gosto verdadeiramente do que vejo e do que ouço. Durante muito tempo e particularmente durante a minha adolescência era habitual a máxima “muito riso pouco siso”, que criava alguma contestação óbvia num contexto de falta de permissividade e de liberdade. Porém, parece que esta continua a prevalecer, embora a liberdade tenha assumido o caminho da libertinagem, de tudo se poder dizer e criticar sem pejo nem respeito pelo outro. A internet faculta-nos muitas citações sobre o riso e esta é, de facto, a minha preferida: “Não é livre quem faz troça das suas próprias cadeias.” Lessing