Criança, muito criança, era o Natal para mim uma festa cheia de contrastes: a mais amada, a mais ansiada, mas também a mais perversa. Esperava que o Menino Jesus colocasse um presente na bota, que fosse o resultado de muitos dias de bom comportamento, de boas atitudes, de boas classificações na escola. Cedo concluí que Ele tinha escolhas especiais e eu não estava incluída, pois esquecia-se de mim. O jogo do rapa com as nozes e as amêndoas em redor da lareira comum, que eu disputava de uma forma aguerrida como se fosse o momento mais importante da minha vida, ajudava-me a esquecer a derrota apenas interior. Acalentava a ideia de que para o ano fosse mais justo. Agradece pelo que há, dizia a minha mãe.
Nos anos seguintes, desacreditei, pois amadureci para o entendimento do universo que me rodeava. Então considerei que o Natal era apenas uma farsa, um dia igual a todos os outros, uma festa celebrada pela Igreja que não olha para todos de igual forma. Relativizei a família, desdenhei do encontro, da união, das origens e deixei de procurar o Pinheiro de Natal nos campos ainda fartos de verde, de musgo e de pinhas. Nos livros, encontrava outros Natais mais perfeitos, quentes e coloridos. Devias agradecer pelo que tens, dizia a minha mãe, sapientemente.
Cresci. Com a Criança ainda próxima, descobri uma outra personagem que trouxe com ela o espírito natalício, o Pai Natal. Graças a ele, fui construindo um mundo de magia, que fui instintivamente repartindo pelos meus filhos e multiplicando por outros filhos que ainda acreditavam na beleza do mundo. Gostei muito. Porém, a consciência de que nesse mundo não cabiam muitas crianças acompanhou-me e muitas vezes dava comigo a pensar nas injustiças sociais, nas inúmeras crianças que nada podem sonhar porque nada têm. Agradece, repetia a minha mãe, pelo que tens, fundamentalmente pela família.
Hoje, tento, com mais entusiasmo ainda, manter a Criança perto de mim. Ouço palavras como consumismo, desigualdade, guerra, fome, miséria. Soam muito longe nestas paisagens iluminadas, quentes, vivas, embora todos saibam que há erros que se repetem e que os homens oferecem muitas vezes presentes sem conteúdo ou presentes envenenados. Apesar de a minha mãe já não se encontrar comigo, pois acredito que viverá num universo de gratidão, onde o espírito natalício perdura, continuo ainda a ouvir a sua voz: Agradece, filha, pelo que tens.