Entrevista com o Presidente do Grupo Folclórico de Santa Cruz de Vila Meã, Torcato Bessa.
Jornalde Vila Meã – Concordará certamente que os homens fazem a história e fazem parte dela. O Rancho Folclórico Santa Cruz de Riba Tâmega é um exemplo para a nossa terra. Pode contar-nos como nasceu e como se mantém até hoje?
Torcato Bessa – Por volta dos anos sessenta, a igreja de Real passou por grandes obras de beneficiação, especialmente relativas a uma nova ornamentação interior, com especial enfoque na talha dourada, já que, até aí, tudo era pedra. Tais melhoramentos, como é fácil perceber, acarretaram custos enormes, a maioria dos quais suportados por emigrantes no Brasil, oriundos de Vila Meã, mas que não se mostraram suficientes para cobrir o total dos custos das obras realizadas.
Curava esta freguesia um tal Padre Marinho que tinha cativado o respeito e admiração dos devotos da cristandade e que com facilidade convencia os seus paroquianos a colaborar. Então, para colmatar o défice do financiamento resultante da contribuição brasileira, decidiu organizar cortejos de oferendas. Formaram-se alguns grupos de populares organizados por lugares da freguesia que procuravam, para além das oferendas, reunir alguns instrumentos musicais, ao som dos quais dançavam alguns pares, trajados com usos antigos e alegóricos, capazes de atrair assistentes para junto do seu carro, de quem esperavam lances sobre a prendas a vender, ciosos de ouvirem o nome do seu grupo declarado como o que mais rendeu, em termos financeiros. Tal foi o regozijo sentido pelos Realenses, ao observarem os grupos vestidos à moda antiga que, como já há cerca de quarenta anos se ouvia falar de Folclore, começou a germinar no centro de Vila Meã a ideia de formar um grupo de folclore.

Foi então que António de Sousa Leite resolveu implantar o folclore no concelho de Amarante e, apoiando-se especialmente nos moradores do Terreiro e nos familiares da Casa da Quintã, se meteu à obra de ALMA E CORAÇÃO, percorrendo não só a freguesia de Real, como as de Ataíde, Banho e Carvalhosa, procurando pessoas antigas (80 anos ou mais) que pudessem fornecer conhecimentos sobre usos e costumes do tempo da sua mocidade, isto é, do século XIX.
Quando se aplica o termo “de alma e coração” consideramos que a alma significa a força anímica do Fundador e o coração encarna a dedicação e o amor com que o fez. Acompanhei-o em duas ou três (das muitas missões que ele realizou) e tive oportunidade de ver e ouvir que não se tratou de uma tarefa muito facilitada. Algumas pessoas pensavam que o que se pretendia era ridicularizá-las. É que, verdade seja dita, o termo folclore não foi rapidamente absorvido pela população em geral, sendo frequentemente desvalorizado por aqueles que, mesmo sendo da classe humilde, tinham asco à vida do campo.
A maioria dos temas empregues versavam sobre a vida do povo e era, na generalidade dos casos, a atividade agrícola que gerava a reunião de pessoas para trabalhos em grupo e que, depois da refeição da noite, ocasionavam a junção de outros elementos (rapazes) que, durante o dia, tinham outras ocupações, mas que as raparigas aliciavam com os seus ”ternos”, emitidos em pontos estratégicos, garantindo assim a possibilidade de uma convivência com folguedos com que se pretendia esquecer a dureza do trabalho executado durante o dia.
Daí que os “filhos de ninguém”, quando se quisessem colocar em posições da alta sociedade, tratavam mal o Folclore, tentando ridicularizá-lo. Recordo, a este propósito, um desfile que fizemos em Amarante quando estávamos a passar junto ao antigo edifício dos CTT. Do lado do Alcino dos Reis estavam dois rapazes que disseram: “Aí vem a bosta!”. A minha resposta foi imediata: “A passar em frente à bosta que os vossos pais fizeram.”. Com um gesto de admiração e cobardia, retiraram-se. Ora veja-se agora qual era a dificuldade de, naqueles tempos, arranjar colaboradores para verterem informações que eram necessárias para documentar a História do nosso Povo.
Mas o SR. António Leite não era homem para desanimar com pouco e, entregando-se DE ALMA E CORAÇÃO à causa da História de Vila Meã, fundou o Grupo Folclórico de Santa Cruz de Ribatâmega que, às 21 horas do dia 20 de janeiro de 1963, entrou em cena, no Cine Teatro Raimundo de Magalhães, apadrinhado pelo Rancho Regional de Paredes.
Cinco anos depois, o Grupo foi crismado e tomou o nome de Grupo de Cantares e Danças de Santa Cruz de Ribatâmega (Vila Meã). Começara depois as digressões pela Europa. Numa delas, por terras de França, em 1977 e já quando regressavam, ocorreu uma cisão que abrangeu não só o corpo diretivo como o corpo operacional e o SR. Leite retirou-se. Porém, o “vírus” do Folclore não foi tratado e, logo a seguir, a 19 de novembro (do mesmo ano) fundou o Grupo Folclórico de Santa Cruz de Vila Meã. Não podemos deixar de realçar a importância de tal Obra para Vila Meã.
Poucos terão reparado na grandeza a que o Folclore tem elevado Vila Meã. Mas será justo que se diga que não se conhece outra instituição ou outra coletividade que tenha levado tão longe o nome de Vila Meã e talvez de Amarante. Na verdade, a instituição do Folclore tem levado Vila Meã a vários países da Europa, como a Espanha, a Andorra, a França e a Alemanha. Por tudo isto, decidiu a direção do Grupo Folclórico de Santa Cruz de Vila Meã que, no passado dia 19 de novembro, ao comemorar o 45º aniversário da sua fundação, promovesse uma justa homenagem ao seu fundador, com um programa que contou com missa de sufrágio para António de Sousa Leite, romagem ao cemitério de Carvalhosa, onde repousam os seus restos mortais, distribuição de lembranças aos convidados, na sede do Grupo, jantar para os convidados e exibição de três grupo folclóricos, no Centro Cívico Raimundo Magalhães: O Grupo organizador, o Grupo Folclórico das Escola Secundária Infante D. Henrique do Porto e o Grupo Folclórico das Lavradeiras de Gatim – Vila Verde. Antes de entrarem os Ranchos em ação, algumas senhoras mostraram como é que, há cerca de 50 anos, ajudavam a equilibrar o orçamento familiar, bordando toalhas que os industriais da Lixa comerciavam pelo país inteiro, como sendo bordados da Lixa, mas que, efetivamente, eram bordados em Vila Meã.
Como também acontecia naqueles serões, este também acabou em bailarico, dando uma imagem clara do que foi a vida do povo, nos meados do século XX, prática que não demorará muito a ter lugar no folclore de Vila Meã. Realçado foi, nessa altura, que não demorará muito tempo que este quadro venha a figurar como pertencente ao Folclore.
Nunca será demais realçar a intervenção dos elementos do nosso Grupo cantando a missa, vozes e cordas, com a colaboração da professora Cristina que leciona canto musical no Centro Paroquial de Real e dirige o grupo coral da igreja e ainda do organista Pedro que deram especial ajuda. Deve-se ainda realçar o valor de algumas vozes, do nosso Grupo, que surpreenderam pela perfeição.
Na romagem ao cemitério e em jeito de justificação da mesma, foram citadas palavras que incluíam factos da História de Portugal, justificados pelo princípio de que Folclore é História, ao narrar acontecimentos e cultura com mais de um século de idade, como o são os Usos e os Costumes do nosso Povo, em tempos recuados. Espírito e Alma são palavras muitas vezes citadas em contextos religiosos, mas também o são em contextos mundanos. Vejamos: O espírito está na imagem que qualquer mortal grava na nossa memória que, ao invocá-la, nos parece rever a pessoa física. Quanto à alma: Conhecemos uma citação atribuída ao tempo da terceira invasão francesa, em 1810. Napoleão Bonaparte que não gostou que Portugal tivesse ignorado a sua ordem de encerrar todos os portos europeus aos navios ingleses, mandou invadir o nosso país, para o que obteve autorização de Espanha, com a condição de após a conquista, dividir o território por aqueles dois países. Para tal mandou invadir-nos três vezes em 1807, 1808 e 1810. Depois do fracasso das duas primeiras reuniu as suas melhores tropas e entregou o comando da Terceira ao seu general mais cotado, o general André Masséna “o maior nome de meu império militar”, como lhe chamava. Não se sabe a quem atribuir, se a Napoleão se a Masséna, mas é conhecida a frase: “Alma até Almeida”.
Ora, é citada, na História, a entrada da terceira invasão pela Beira Alta, mais precisamente pela localidade de Almeida, no Distrito da Guarda. Tivesse sido um ou outro a proferi-la, a intenção era incutir nas tropas a força e a coragem para enfrentar a dureza da jornada pois, para além dos cavaleiros, muitos mais seriam os apeados que teriam de percorrer a enorme distância – cerca de 1700 Kms. Era preciso, realmente, muita coragem.
Também “Os Lusíadas”, de Luís de Camões foram referidos para exaltar a OBRA do homenageado, com os versos “E aqueles que por obras valerosas/ Se vão da lei da morte libertando: / Cantando espalharei por toda a parte/ Se a tanto me ajudar o engenho e arte.” E assim, como António de Sousa Leite foi criador de obra valorosa, todos os que, naquele dia, estiveram junto ao seu túmulo contribuíram para que a sua alma e o seu espírito “SE VÃO DA LEI DA MORTE LIBERTANDO”.
JVM – Fale-nos um pouco sobre a sua experiência como dirigente do Rancho Folclórico.
TB – Pessoalmente tenho muito gosto de referir que a minha presidência no Grupo Folclórico de Santa Cruz de Vila Meã me proporciona uma experiência agradável, na medida em que sou bem apoiado pela maioria dos colegas de direção que se têm mostrado incansáveis nos trabalhos que tenho de lhes destinar, concretizando-os com prontidão e com um sorriso nos lábios. Da mesma forma quero salientar a entrega total de todos os que têm a seu cargo materializar os objetivos do Grupo. Dançarinos, músicos e figurantes esmeram-se em dedicação e pontualidade, para que tudo aconteça com elevação e sentido de responsabilidade. Estas apreciações são fruto da minha colaboração com as coletividades de Vila Meã, algumas como presidente: da direção outras da assembleia-geral, do conselho fiscal, ou como secretário da direção, da assembleia geral e do conselho fiscal. Este trajeto proporcionou-me bagagem suficiente para formar opinião sobre o desempenho dos que me rodearam, para poder agora classificar os que me rodeiam.
JVM – Quais têm sido as principais dificuldades?
TB – Engana-se quem pensa que o Folclore se rege sempre com alívio. Poderá ser tudo menos um mar-de-rosas. As despesas são avultadas e as receitas nem sempre lhe dão cobertura, pois resumem-se a Cantar Janeiras, realizar uma feira à moda antiga, alguns donativos de entidades particulares e empresariais, subsídios das autarquias locais – Câmara e Juntas de Freguesia.
Em contrapartida, as despesas são avultadas, onde ocupam lugar importante os transportes e as inerentes à organização de festivais da modalidade, pois além dos transportes para retribuir as presenças dos Grupos participantes, é preciso garantir-lhes uma refeição no dia em que nos prestam a sua colaboração. A iluminação e a aparelhagem sonora completam o elenco dos pesados custos a suportar. Acrescem as exigências da Edilidade para autorizar a sua realização que, não sendo muito onerosas, dão um trabalho extenuante para identificar o local do evento, as vias de evacuação, o problema do ruído (como se a música se devesse considerar ruído), etc.
JVM – De que forma encaram os jovens hoje essa instituição cultural? Aderem com facilidade?
TB – É verdade que a juventude não prima pelo interesse pela cultura. Todavia, não é no nosso Grupo que se nota a maior dificuldade, se atendermos ao número de componentes cujas idades ainda não atingiram as três décadas. Mas não podemos descurar o problema, pois a juventude não dura sempre e torna-se necessário fazer compreender duas coisas.
Uma relacionada com a função do Folclore na sociedade que deve ser valorizada pelas entidades competentes, não através da organização de eventos com índole diferente, mas sendo capazes de cativar o interesse da juventude, aproveitando para lhes fazer perceber que o Folclore é História e que, por isso mesmo, é cultura e que representá-la só é comparável com a arte dos atores que representam personagens, reais ou fictícias, mas que contam uma história. Por outro lado, o Folclore é a história do povo nos seus usos, costumes e tradições, onde os atos religiosos ocupam lugar importante, e também os divertimentos, com os quais se esqueciam as agruras e a dureza dos trabalhos coletivos que a produção agrícola exigia.
JVM – Considerou justa e importante a homenagem feita recentemente pela Câmara Municipal de Amarante, em Vila Meã?
TB – Pelas razões já atrás aludidas, o Folclore é hoje um eixo de cultura espalhado por todo o concelho de Amarante. Mas não se esqueçam que foi aqui em Vila Meã que ele marcou a sua chegada, pelo que as figuras, a ele relativas, foram colocadas no sítio certo. E, por tal, quero dar os parabéns aos responsáveis pela sua implantação, mas não me fico por aqui, porque também quero felicitar quem teve a ideia de escolher, para a sua implantação, aquela rotunda, já que o Fundador do Folclore, se fosse vivo, ficaria com ela à vista da janela de sua casa.