A arte e a cultura estão de parabéns neste mês de outubro, em Amarante. Agustina Bessa-Luís inaugurou as celebrações (Não tivesse ela nascido em Vila Meã, de acordo com as suas palavras, embora alguém tivesse já almejado essa honra para outro lugar!), no Claustro do Mosteiro de S. Gonçalo, no dia 15, com a presença do Senhor Presidente da República, que trouxe atrás de si discursos eruditos e letrados (Na terra que viu nascer a centenária autora, não há sapiência suficiente para se honrar a sua arte?); com a sublime atuação da Orquestra do Norte, no Cineteatro Raimundo Magalhães, ao longo da qual ninguém ficou indiferente às palavras de grata afetividade do Maestro, reveladoras da proximidade entre a sua avó, Sophia de Mello Breyner e Agustina Bessa-Luís, e à harmonia encantatória de todos os timbres tão bem acolhidos por um público completamente embebecido; com a representação da obra infantojuvenil “Memórias de Giz” pelo grupo de teatro Filandorra, que nos transportou, no dia seguinte, ao mundo da imaginação, das palavras e das verdades. Essas palavras e essas verdades fluíram noutras casas, noutras direções, noutras homenagens. Refira-se, por exemplo, o surpreendente mural pintado no Porto, junto ao Campo Alegre, no qual a sua filha Mónica Baldaque participou com mais 11 artistas. (Vêm-me à memória as sábias palavras de José Saramago, outro autor homenageado este ano, “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”).
Outra figura distinguida foi o conselheiro António Cândido, com estátua no largo do Arquinho em Amarante; dele celebra-se não o centenário do nascimento, mas o da morte. (O Conselheiro António Cândido nasceu em Candemil em 1850 e foi professor e político, filiado no Partido Progressista, Par do Reino, Procurador-Geral da Coroa, excelente orador parlamentar.) Além da sua intensa atividade política, esteve ligado ao grupo Vencidos da Vida, juntamente com Eça de Queirós, Guerra Junqueiro, entre outros.
Num dos seus mais conhecidos poemas, Alberto Caeiro exprime “Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia, / Não há nada mais simples. / Tem só duas datas—a da minha nascença e a da minha morte. / Entre uma e outra coisa todos os dias são meus.” De facto, assim é. Com todos os humanos, com todos os seres. Porém, alguns homens têm um lugar reservado desde a nascença nas páginas da História, precisaram apenas de calcorrear o caminho, e muitas vezes com esforços hercúleos, diga-se, outros têm apenas os dias por sua conta, embora não deixem de fazer parte do Todo, ao qual todos pertencemos. Falar-se-ia aqui, na consciência anónima da sua existência como pessoas a desempenhar da melhor forma possível (ou não) a sua missão. E talvez seja esta uma das grandes diferenças entre o escritor, o homem reconhecido, o artista, e o homem comum: revelar ou não a sua consciência de ser. A história é o passado. Esta é uma verdade inalienável. O enaltecimento é feito com sentido merecido, pelas obras, pelas atitudes, pelas marcas deixadas para os vindouros. Agustina Bessa-Luís merece, sem dúvida. António Cândido também. Vila Meã, Candemil e Amarante orgulham-se. Portugal e a cultura portuguesa também.
No entanto, e sem desmerecer o valor de todos os referenciados, acrescente-se que o tempo e a integridade apelam para que se olhe para o presente, para os que também estão vivos deste lado e continuam a lutar pela dignificação da cultura e da arte. Eles pedem apenas um olhar para o hoje, para o agora, pois, numa fração de segundos deixará de o ser e passará a ser o ontem. Ou será a palavra “reconhecimento” uma pertença apenas do passado?
Concluo com a voz de Agustina que felizmente, e como se comprava, que continua a ter voz: “A arte é, provavelmente, uma experiência inútil; como a «paixão inútil» em que cristaliza o homem. Mas inútil apenas como tragédia de que a humanidade beneficie; porque a arte é a menos trágica das ocupações, porque isso não envolve uma moral objetiva. Mas se todos os artistas da terra parassem durante umas horas, deixassem de produzir uma ideia, um quadro, uma nota de música, fazia-se um deserto extraordinário. Acreditem que os teares paravam, também, e as fábricas; as gares ficavam estranhamente vazias, as mulheres emudeciam. A arte é, no entanto, uma coisa explosiva. Houve, e há decerto em qualquer lugar da terra, pessoas que se dedicam à experiência inútil que é a arte, pessoas como Virgílio, por exemplo, e que sabem que o seu silêncio pode ser mortal. Se os poetas se calassem subitamente e só ficasse no ar o ruído dos motores, porque até o vento se calava no fundo dos vales, penso que até as guerras se iam extinguindo, sem derrota e sem vitória, com a mansidão das coisas estéreis. O laço da ficção, que gera a expectativa, é mais forte do que todas as realidades acumuláveis. Se ele se quebra, o equilíbrio entre os seres sofre grave prejuízo.” (Agustina Bessa-Luís, in ‘Dicionário Imperfeito’)