As últimas edições têm, de uma forma ou doutra, prestado homenagem aos grandes autores nacionais, Agustina Bessa-Luís e José Saramago, neste ano de celebração do centenário do seu nascimento. Prometi, no editorial de janeiro, fazer referência a um outro autor que, embora um pouco mais distante e menos conhecido pelo público português, merece também ser lembrado: José Craveirinha. O prometido é devido, por isso a minha singela homenagem àquele que é considerado um dos maiores poetas da lusofonia.
João José Craveirinha nasceu no dia 28 de maio de 1922 em Lourenço Marques (atual Maputo) e faleceu no dia 6 de fevereiro de 2003, em Joanesburgo (África do Sul). Em 1991 foi galardoado com o Prémio Camões, o mais importante prémio literário da língua portuguesa.
As palavras que se seguem são do poeta, do homem, que de si fala melhor do que ninguém.
«Nasci a primeira vez em 28 de maio de 1922. Isto num domingo. Chamaram-me Sontinho, diminutivo de Sonto. Isto por parte da minha mãe, claro. Por parte do meu pai, fiquei José. Aonde? Na Av. Do Zihlahla, entre o Alto Maé e como quem vai para o Xipamanine. Bairros de quem? Bairros de pobres. Nasci a segunda vez quando me fizeram descobrir que era mulato…A seguir, fui nascendo à medida das circunstâncias impostas pelos outros. Quando o meu pai foi de vez, tive outro pai: seu irmão. E a partir de cada nascimento, eu tinha a felicidade de ver um problema a menos e um dilema a mais. Por isso, muito cedo, a terra natal em termos de Pátria e de opção. Quando a minha mãe foi de vez, outra mãe: Moçambique. A opção por causa do meu pai branco e da minha mãe preta. Nasci ainda outra vez no jornal O Brado Africano. No mesmo em que também nasceram Rui de Noronha e Noémia de Sousa. Muito desporto marcou-me o corpo e o espírito. Esforço, competição, vitória e derrota, sacrifício até à exaustão. Temperado por tudo isso. Talvez por causa do meu pai, mais agnóstico do que ateu. Talvez por causa do meu pai, encontrando no Amor a sublimação de tudo. Mesmo da Pátria. Ou antes: principalmente da Pátria. Por parte de minha mãe, só resignação. Uma luta incessante comigo próprio. Autodidata. Minha grande aventura: ser pai. Depois, eu casado. Mas casado quando quis. E como quis. Escrever poemas, o meu refúgio, o meu País também. Uma necessidade angustiosa e urgente de ser cidadão desse País, muitas vezes, altas horas da noite.»
José Craveirinha foi o primeiro Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Associação dos Escritores Moçambicanos entre 1982 e 1987. Em 2003, esta Associação, em parceria com a Hidroelétrica de Cahora Bassa, instituiu o Prémio José Craveirinha de Literatura.
Destacam-se, entre as suas obras, Xigubo, Karingana ua Karingana, Cela 1, Maria, Poemas da Prisão e Hamina e outros contos.
Olá, Maria
Tristonho cão sarnento
metáforas de infortúnio
latindo
na memória.
É quando se me incrustram nirvanas
e a evocação dos sagrados nomes
em nossas almas inesquecem
como por exemplo quando digo:
Olá, mestre Cervantes
o do Quixote de la Mancha
Olá, Miguel Ângelo
o da Pietá.
Olá, Luís de Camões
o dos Lusíadas.
Olá Drummond, olá Manuel Bandeira
e olá, Graciliano Ramos o trio
avançado no time do Tiradentes
E
Olá, Pablos: o do Chile
outro da Guernica
e outro do violoncelo.
Olá, ilustre Charles Gounod
o da Ave Maria.
Ou…
Olá, insigne Duke Ellington
o de uma Cabana no Céu.
E também
Olá, Mano Gabriel Garcia Marques
o dos Cem Anos de Solidão.
E neste meu desabafo
ergo minha mais justa confissão:
– Olá, minha querida Maria
imerecida esposa toda a vida
de um tal Zé Craveirinha.
(Maria. Maputo: Ndjira, 1998)