“A paz é um eufemismo do fim” – José Gardeazabal

Entrevista a José Gardeazabal realizada no âmbito do programa cultural “Encontros com Autores” realizado pela Junta de Freguesia de Vila Meã.

Jornal de Vila Meã – Como se processa, para si, o ato de criação artística?
José Gardeazabal – O ato de criação, para mim, é um exercício de atenção. Passa pela vida, pela leitura, pela escrita. Também vive de pausas, mas não de interrupções. A literatura é algo que corre paralelo à vida. Não em vez da vida, mas vida também.

JVM – Quais são as grandes preocupações ou as temáticas transversais à sua obra?
JG – Difícil estreitar as temáticas para uma resposta. Gosto da transversalidade, da surpresa, e da ironia. Gosto de uma literatura que visita a democracia e o capitalismo, a religião e a sexualidade. Uma literatura testemunho da mistura e da promessa do mundo. Uma literatura que torne difícil responder à pergunta: “e este livro, é sobre o quê?” Se pensarmos em meta-tema, podemos falar da intimidade de um casal em “Quarentena Uma História de Amor”, emancipação feminina em “Penélope Está de Partida”, ou a pobreza em “A Melhor Máquina Viva”. Mas será sempre uma simplificação.

JVM – Referiu, ao longo da apresentação dos seus livros, que não há muitos autores portugueses a enveredarem pela ironia. Mas ela marca a sua obra, criando desconcerto e empatia com o leitor. Quer comentar?
JG – A ironia é uma das melhores armas da democracia, e eu gosto de pensar na minha literatura como um exercício radical de pluralismo e democracia. Uma literatura que questiona e responde e abre novamente para novas perguntas. Uma literatura que reescreve o mundo, lançando novos ângulos de visão. Que expõe e une contrários, que contribui para o diálogo cívico sobre o que somos e como queremos sê-lo. A ironia é um bom instrumento e, para mim, um parceiro natural da literatura.

JVM – Não há escrita sem leitura. Fale-nos dos seus mestres, das suas paixões como leitor.
JG – Quanto às paixões, a minha resposta tem de ser um cliché: ora, são tantas as paixões! Mas se for obrigado a apontar alguns escritores que deviam ser mais lidos, apesar de bem reconhecidos, poderia falar de Clarice Lispector, Vladimir Nabokov, Don DeLillo, Roberto Bolaño e Olga Tokarczuk. Mas também podiam ser Otessa Moshfegh, Geoff Dyer, Valeria Luiselli, J.G Ballard e George Saunders. E também podiam ser…

JVM – As redes sociais dominam todas as áreas da sociedade e é inevitável a sua incursão nas áreas da arte e da escrita. Acha que a leitura e o livro correm riscos de ser banidos?
JG – Tenho muitas dúvidas que o livro alguma vez desapareça. Pela sua proximidade, pela sua natureza e fisicalidade, pela sua portabilidade.

JVM – Muitos livros se escreveram durante a pandemia. Evasão, diversão, paixão. Qual foi o seu objetivo principal?
JG – O “Quarentena Uma História de Amor” nasce no confinamento como uma vontade de testemunho do difícil e do humano que, senti, íamos esquecer. Parti de um grande pudor em usar a literatura como testemunho do trágico, e não o fiz. Tentei antes trabalhar o mistério e o susto do confinamento em volta da narrativa de uma intimidade perdida e das suas hipóteses, ou não, de renascimento. O confinamento é um pretexto e o mundo “lá fora” a paisagem que enquadra a aventura do casal.

JVM – Relativamente ao seu livro “Penélope está de partida,” é um protesto feminino?
JG – “Penélope Está de Parida” é um grito de emancipação de uma personagem injustamente manietada pela Odisseia. Surgiu de uma certa necessidade de dar voz a Penélope que, a meio da sua espera por Ulisses, se levanta, põe um pé fora do Palácio e ajusta contas com um Ulisses ausente. Confronta Ulisses como companheira que se recusa ao papel de figurante. É uma emancipação mental e um arrolar das dores da distância.

JVM – “A paz é um eufemismo do fim”, escreve no seu livro “Quarentena, uma história de Amor”. Sente-se em paz depois de escrever um livro?
JG – É sempre um momento especial, feito de várias etapas todas com um significado e um ritmo próprios. Mas fundamentalmente é um momento de libertação para mim e de aceitação do destino individual do livro, que fará o seu caminho e, sei-o, voltará a falar-me ao ouvido e a dizer-me coisas, muitas inteiramente novas e minhas, ao mesmo tempo.

Cidália Fernandes