“Violência não é um sinal de força, a violência é um sinal de desespero e fraqueza.” Dalai Lama

A notícia sobre os atos de violência cometidos contra a pequenina Jéssica assombrou o país. Mais uma vez. Mais uma criança. E quantos mais casos haverá, longe da exposição dos meios de comunicação social? Quantos mais engolem em silêncio agressividades e vão crescendo ao lado de modelos e comportamentos que depois se transformam em paradigmas repetitivos? De uma forma ou doutra, explícita ou implicitamente, muita gente se questiona. Como é possível que adultos, no pleno uso das suas capacidades mentais, usem uma criança indefesa, completamente indefesa – pois nem sequer se poderia exprimir através da acusação, segundo se apurou, o seu vocabulário estava reduzido a duas ou três palavras – para extravasarem vinganças e raivas dirigidas a outros? É cruel, desumano, monstruoso. Especulou-se que fosse uma dívida de bruxaria. É indiferente. A verdade é que se tratou de um crime hediondo e imperdoável. E a criança morreu. Apelamos para a justiça dos homens, que é questionável; chegamos a questionar também a própria justiça divina, tão extrema é a situação, tão grave o procedimento, tão ignóbil o gesto. Somos todos irmãos, aprendemos, através das palavras de Cristo, mas, cega pela fúria e pelo descontentamento, apetece-me dizer que irmãos destes não quero.

Este caso traz-nos à lembrança outro ainda recente, o da Valentina. De nada lhe valeu ser uma menina mais crescidinha, de nada lhe valeu gostar de gatos, de nada lhe valeu apresentar a sua sensibilidade de menina predisposta ao sorriso, pois sofreu também às mãos de carrascos desumanos. E se avançarmos no tempo, na idade, digamos, encontramos tantas mulheres que perdem a vida devido também à agressividade e à prepotência de maridos, de companheiros, de homens. Falamos, neste caso, de violência doméstica. Maioritariamente, as vítimas são femininas.

E depois, para acalmar a consciência, dizemos que em todo o mundo isto acontece. Mal de muitos, conforto é. A falácia dos adágios, acrescento. E lavamos as mãos como Pilatos, lavamos a responsabilidade, reforçamos a certeza hipócrita que nos mantém de cabeça erguida de que somos todos iguais, pelo menos desde que foram redigidos os direitos do homem. E na prática? Será que somos todos iguais? Se os malvados têm direito à defesa, onde estão afinal os direitos das vítimas? Elegemos partidos, constituídos por homens que dizem defender a comunidade, que dizem ser a voz de todos, que prometem criar leis para o bem comum. Onde estão nestes momentos?

Curiosamente, há investigações centradas no estudo da relação entre violência e infância no mundo grego e constata-se que a violência cometida contra crianças está amplamente representada na mitologia, na literatura e na arte. Exemplifique-se apenas o caso de Hefestos, que ao tentar defender a mãe Hera, numa discussão com Zeus, o pai, foi lançado pelo progenitor da morada olímpica, tendo acabado por se despenhar em Lemnos, já quase sem fôlego, depois de um dia inteiro a cair, tendo ficado coxo, em consequência disso.

É cruel e bárbaro, continuo a pensar. Séculos passaram. A Humanidade não aprendeu nada? Não cresceu? Não evoluiu?
Tenho direito ao inconformismo. Desculpa-se a violência como se fosse uma mazela hereditária para a qual não há remédio. A Humanidade avançou tanto em tão pouco tempo (aceitou a igualdade de géneros, uma nobre conquista, continua no processo de descobertas científicas valiosíssimas, conheceu novos mundos) por isso, não pode permitir nem pactuar com esta regressão moral e social.

O país ficou assombrado com a notícia, como disse. O mundo também. Apenas durante algum tempo. Depois, esquece e silencia. E espera que outro caso aconteça, para se repetir tudo de novo.

quero mudar de pele
mudar de dentes
por mim
ou porque sim
José Gardeazabal, in Penélope Está de Partida