Adolfo Luxúria Canibal

“A minha escrita uma espécie de bengala para o pensamento”

Entrevista a Adolfo Luxúria Canibal realizada no âmbito do programa cultural “Festa do Livro” realizado pela União de Freguesias de Amarante

Jornal de Vila Meã – Como se processa, para si, o ato de criação artística?
Adolfo Luxúria Canibal – Não tenho um método definido, varia muito de situação para situação. Normalmente o ato de criação artística é despoletado por um estímulo externo, um pedido de um texto ou poema para uma publicação, revista ou fanzine, uma letra para uma canção, a concepção de um espectáculo, seja o que for. Em função do que me proponho fazer em resposta a essa solicitação externa ora tento documentar-me sobre o assunto, caso seja algo relacionado com factos reais ou obras existentes, ou sobre a região, tratando-se de espectáculos de comunidade, ora ouço a música ou tento perceber o contexto em que o ato criativo se vai inserir. E depois deixo que o meu subconsciente me dite algo e me encaminhe a escrita, normalmente com reminiscência esquecidas de um qualquer vivido que a situação faz de novo emergir. Ou faço jogos literários a partir dos muitos que a história já consagrou, dos dadaístas e surrealistas aos letristas e situacionistas.

JVM – Quais são as grandes preocupações presentes na sua obra?
ALC – A minha obra não obedece a grandes preocupações. São os assuntos da vida urbana e da contemporaneidade aquilo que mais me inquieta e sobre os quais mais me debruço, sendo a minha escrita uma espécie de bengala para o pensamento. O escrever, o criar espectáculos, é uma forma de pensar, normalmente uma forma de pensar colectivamente, porque a criação desses espectáculos é por norma uma criação colectiva, e mesmo quando a minha função de escrita é uma função solitária ela participa e relaciona-se com esse mais geral colectivo que cria os espectáculos ou as canções. Há sempre um acto de grupo e, nesse sentido, há sempre um pensar colectivo, uma participação colectiva no pensamento que se cria.

JVM – Como autor, como se relaciona com os seus leitores? Considera que deve haver proximidade ou o recato é sempre mais seguro?
ALC – Não posso dizer que tenha um qualquer relacionamento com leitores. Até porque o meu trabalho é mais recepcionado por ouvintes do que por leitores, julgo eu. Mas, independentemente de serem ouvintes ou leitores, o meu relacionamento continua a ser nulo. Dá-me prazer que me ouçam ou leiam e fico contente quando percebo que o meu pensamento ajudou alguém também a pensar, mas é tudo. Para mim essa entidade abstracta que é o público, seja ouvinte ou leitor, não existe, não entra na equação criativa. Não é a sua aprovação ou desaprovação que me impele à escrita ou a qualquer outro acto artístico. Não é por recato, é apenas porque me é absolutamente indiferente.

Jornal de Vila Meã – Fale-nos um pouco da sua última obra “O Crespos”.
Adolfo Luxúria Canibal – “O Crespos” é aquilo que se convencionou chamar uma novela gráfica. No fundo, é um pequeno conto ilustrado, no caso por José Carlos Costa, meu amigo desde a adolescência e habitual ilustrador das capas dos discos dos Mão Morta. Foi um texto escrito em 2007 – o ano em que o café “A Brasileira” de Braga festejou o seu centésimo aniversário –, presumo que para uma revista ou fanzine. De facto, não tenho já memória do propósito da sua escrita nem da solicitação que a despoletou. Sei que foi em 2007 porque estava datado. E em 2019, quando iniciei com o baterista Pedro Oliveira, sob a sua designação experimental e electrónica Krake, um espectáculo de leitura de pequenos contos ambientados com música, “O Crespos” foi uma das prosas escolhidas no meu arquivo de textos. Foi depois esta versão oral que foi descoberta por um editor da Porto Editora, que por ela tanto se encantou que acabou por sugerir a sua publicação como novela gráfica. “O Crespos” é assim a história de uma espécie de personagem do final do século XIX, o flâneur, tão cantado por Baudelaire e a quem Walter Benjamin atribuiu o começo da modernidade; mas contrariamente a esse flâneur clássico, que deambulava pela cidade à procura do seu frenesim para a absorver em todo o seu bulício, sendo simultaneamente espectador e centro da acção, fundindo-se nela, o personagem de “O Crespos” não sai do sítio – todos os dias se senta à mesma mesa de “A Brasileira” e é a cidade, com todo o seu frenesim e todo o seu bulício, que vem deambular à sua volta, para por ele ser absorvida. E é a cidade de Braga que desfila por esse café central que é “A Brasileira”, ao longo das épocas, desde o tempo da ditadura até ao século XXI, passando pelo 25 de Abril e o período revolucionário, que é aflorada no livro, como matéria para a carta de genealogia psicossocial que o Crespos vai elaborando na memória. Levantando questões como a da solidão, que no caso do Crespos era uma condição procurada e essencial à missão que se impusera mas que, cada vez mais, é um estado de impossibilidade de relacionamento ditado pela contemporaneidade tecnológica e massificada. Ou a da memória, encarnada no vazio com que nos deparamos quando todos os Crespos desaparecerem sem deixar rasto…

JVM – As redes sociais dominam todas as áreas da sociedade e é inevitável a sua incursão nas áreas da arte e da escrita. Considera que a leitura e o livro correm riscos de ser banidos?
ALC – É verdade que a vida quotidiana se tornou cada vez mais rápida e frenética e que já poucos têm paciência para ler mais do que um parágrafo ou mesmo apenas um título. E quando se obrigam a fazê-lo raramente percebem o que leem, porque o espírito de sofreguidão lhes impede a necessária digestão mental do que acabaram de ler. Mas isso não significa o fim do livro ou da leitura. Significa apenas que diminuem os leitores (como aliás as estatísticas o comprovam), mas por muito que diminuam haverá sempre pessoas prontas a saborear o profundo prazer de ler um livro, de folhear as suas páginas e de fruir do lento passar do tempo na sua companhia.

Jornal de Vila Meã – Como olha para este tempo de pós-pandemia e de restrições e que implicações poderão ter na educação em geral e dos nossos jovens em particular?
Adolfo Luxúria Canibal – Tudo tem consequências, tudo interfere no crescimento e na discência, mais ainda na daqueles que ainda não cumpriram a sua formação afectiva e social básica, mas se os jovens de 1918/1920 sobreviveram à pneumónica e à guerra com mais ou menos traumas, os de 2020/2022 também o saberão fazer.

Cidália Fernandes