Foto: Lídia Moura

“Há entre nós algo melhor que um amor: uma cumplicidade.” – Marguerite Yourcenar

Vários poderiam ser os temas para trazer a lume nesta edição. A guerra entre a Rússia e a Ucrânia seria o primeiro, obviamente. As mortes, a destruição e as atitudes cruéis de um megalómano que se considera deus na terra continuam a ser expostas, como se de um filme de ficção se tratasse, que revolta de início e que depois se relativiza. A megalomania, a guerra, a fome e as mortes têm outros rostos, noutros lugares, embora tenham perdido o mediatismo. A pandemia e o número de vítimas já não abre os telejornais nem são notícia de primeira página nos jornais nacionais, apesar de haver ainda situações problemáticas. Falar do tempo não seria de forma alguma viável, pois sabemos que neste e nos próximos meses o sol será rei e senhor e se nalguns dias nos parece mais escondido pelas nuvens, noutros há que arregala os olhos, como dizia a minha mãe (expressão que me provocava um sorriso, pois era uma forma bem diferente de humanizar o astro-rei que controla a vida na terra e aquece e alimenta aleatoriamente todos os seres, homens, animais e plantas). Podia falar da inauguração da nova avenida em Vila Meã e dos benefícios para a região, mas as notícias e as imagens fazem jus ao acontecimento, o mesmo sucedendo com outras notícias relacionadas com festividades regionais, agora tão urgentes e necessárias, depois de tanto tempo de reclusão social. Também não vou falar das artes em geral. Vila Meã tem dinamizado várias atividades de literatura, trazendo escritores e mostrando o que se escreve e como se escreve. O aplauso dessa iniciativa também cabe neste jornal e ele tem-lhe atribuído um espaço próprio e se não tem sido aplicado a todos é porque nem todos se têm revelado disponíveis para responderem às solicitações. Muito menos comentaria a apresentação de mais um livro meu nesta que considero a minha terra, pois nela vivo, apesar de ter nascido longe daqui (apenas seria oportuno reiterar a gratidão a todos os que estiveram presentes, pois esses, sim, fizeram falta.)

“De memórias nos fazemos” é o título de um livro que sabia disponível há pouco tempo e que adquiri mal o encontrei. Estamos no ano de celebração do centenário do nascimento de Saramago (já aqui foi referido) e ele foi escrito com esse pretexto. São tantos, pensarão certamente, pois todos os homens das letras gostarão de falar de um homem que levou, através da arte da escrita, Portugal ao mundo.

Trata-se do testemunho de uma vida, de afetos, vivências, diálogos, de alguém que acompanhou durante alguns anos o homem, o escritor, o Nobel – Violante Saramago Matos, filha de José Saramago e de Ilda Reis. De tudo o que li com sofreguidão contida, (e fi-lo numa atitude de filha artística, pois regresso muitas vezes aos livros de Saramago, não só para explorar com os alunos aqueles que fazem parte dos conteúdos programáticos, e quando se gosta de um escritor procura-se saber o máximo sobre ele) retenho uma palavra: cumplicidade. Na verdade, é com ela que se partilha a sabedoria e se aceita e se escuta, abrindo-se, ao mesmo tempo, a porta à presença do outro. Ler um livro é ser cúmplice da criação, do parto de uma obra e posteriormente do seu crescimento. O leitor é cúmplice do autor. Só dessa forma tem sentido a arte como entrega e como partilha. É preciso ter coragem para ser leitor, como disse um dia Lídia Jorge. Particularmente hoje, que vivemos no império da imagem tão vulgarizada pelas redes socias. Acrescento apenas que o título serve também de subtítulo da primeira parte do livro, sendo a segunda “E de livros também”, finalizando com “Empurrões” (entenda-se a metáfora para os estímulos do pai e da mãe). Parafraseando, então, estas frases com brevíssimas alterações, concluiria eu: “De memórias nos fazemos, de livros também e ainda de empurrões”.