Nuno Júdice

“Responder às perguntas que nos fazem obriga-nos a pensar sobre o nosso trabalho”

JVM – Como se processa, para si, o ato de criação poética?
Nuno Júdice – Para mim, a criação poética inscreve-se num processo de trabalho sobre diversos materiais que fazem parte do imaginário da poesia, de que posso destacar a imagem, a memória, os sentimentos, organizados numa linguagem que é pessoal e que dá uma lógica e uma unidade aos poemas que daí resultam. Sendo um trabalho, decorre de uma aprendizagem que é feita ao longo de um período de formação em que o aspecto principal é a leitura de poesia que permite adquirir um conhecimento da tradição e dos grandes temas que fazem parte do mundo que se encontra nas grandes obras do passado, mas ao mesmo tempo dá o conhecimento necessário para, a partir dessas leituras, encontrar uma expressão própria e, por vezes, uma ruptura com esse passado.

JVM – Quais são as grandes preocupações presentes na sua poesia?
NJ – Os temas que me interessam desde sempre estão ligados à minha relação com alguns poetas que os trataram de forma magistral: o amor, de Camões a Garrett, de Florbela Espanca a David Mourão-Ferreira; a natureza num António Nobre ou num Camilo Pessanha, até Eugénio de Andrade; a cidade entre Cesário e Álvaro de Campos; o erotismo como surge em Cesário Verde ou em Herberto Helder; a filosofia e o sagrado, de Antero a Ruy Belo; e muitos mais que poderia citar. Claro que tudo se adapta à minha relação com esses temas, e à forma que encontro para descobrir um modo diferente de os desenvolver. Poderia dizer que os temas do amor, da natureza e da mudança são constantes, incluindo momentos em que posso transformar aquilo que outros tinham escrito a partir de uma experiência pessoal que confere um valor de criação e de invenção a cada poema.

JVM – Como autor, como se relaciona com os seus leitores? Considera que deve haver proximidade ou o recato é sempre mais seguro?
NJ – Não considero que o autor se deva manter na chamada torre de marfim, isolado dos outros e do mundo. A relação com o leitor é muito importante porque permite ao poeta aferir a recepção da sua obra, e perceber por vezes se o caminho que seguiu vai no sentido dessa comunicação necessária com o leitor ou se se afasta dele. Não estou a dizer que um poema deva ser escrito para uma compreensão imediata e fácil, mas sim para a necessidade de abrir caminhos de interpretação que o leitor deve encontrar e seguir. Um poema deve abrir um espaço de comunicação e de diálogo, e viver fora do seu autor nesse campo de uma poesia que pode produzir um olhar diferente sobre as coisas de que fala.

 

JVM – Fale-nos dos seus mestres, das suas paixões como leitor.
NJ – Embora tenha muitos poetas que aprecio e que leio e releio constantemente, poderia citar, na poesia portuguesa, os nomes acima referidos, a que acrescentaria, pela importância que tiveram quando os li, uma Sophia e um Jorge de Sena. Na poesia estrangeira, regresso com frequência a um Pablo Neruda, a um Carlos Drummond de Andrade, a um Vinicius de Moraes, a um Rainer Maria Rilke, para falar apenas dos que me são mais próximos.

JVM – As redes sociais dominam todas as áreas da sociedade e é inevitável a sua incursão nas áreas da arte e da escrita. A leitura e o livro correm riscos de ser banidos?
NJ – Sei que há uma desconfiança grande em relação ao futuro do livro. Admito que estejamos numa situação em que os meios da internet e da comunicação em rede substituem a leitura do texto impresso. Este, no entanto, é insubstituível quando queremos conhecer, na sua totalidade e com a proximidade que o objecto livro nos dá, uma obra literária ou poética. Podemos ler no ecrã um poema, mas isso afasta-nos da realidade que é o poema dentro do livro, e a leitura em contexto desse poema que, para ser entendido em todos os seus aspectos, precisa de ser confrontado com os poemas que estão antes e depois dele. A pressa e o imediato não ajudam à compreensão plena de uma obra.

JVM – Ler e falar de Agustina no seu Centenário. Fale-nos um pouco da sua relação com a autora, com os seus livros, com a sua escrita.
NJ – Tive o privilégio de ter conhecido e convivido com Agustina em múltiplas ocasiões. Comecei a lê-la ainda na faculdade, e logo me apercebi desse mundo inesgotável que nos dá um retrato completo da sociedade portuguesa não só do século XX, mas da própria história portuguesa através do que ela escreveu sobre personagens que destacou dessa história, de Inês de Castro ao marquês de Pombal. O que mais lembro da amizade que tivemos foi o que ela contava da sua relação com escritores, como José Régio, e do trabalho com Manoel de Oliveira, nem sempre em harmonia com ele. Agustina levava dentro dela as qualidades e os defeitos do ser português, e soube desenhá-los com a arte de uma pintura que é insubstituível para nos vermos e compreendermos melhor.

 

JVM – Como olha para este tempo de pós-pandemia e de restrições e que implicações poderão ter na educação em geral e dos nossos jovens em particular?
NJ – Ainda é cedo para ver as consequências da pandemia, a que agora se acrescenta uma nova guerra no Leste da Europa. Os problemas que se colocam a partir destas terráveis realidades tê, a ver com no ressurgimento do medo quanto ao futuro e, no caso da pandemia, com o próprio medo de nos vermos e relacionarmos sem esse receio de um contágio, como o vemos nos romances de Albert Camus, «A peste», e «Ensaio sobre a cegueira», de Saramago.

JVM – O que acha destas atividades levadas a cabo pela Junta de Freguesia de Vila Meã, ao longo do centenário destes autores, Agustina Bessa-Luís e José Saramago?
NJ – Pelo que vi na actividade em que participei, há uma excelente recepção dos escritores no quadro dos encontros com leitores, e o diálogo em que participei foi muito enriquecedor. Ouvirmos as opiniões sobre o que escrevemos e responder às perguntas que nos fazem obriga-nos a pensar sobre o nosso trabalho e a ver melhor esse longo processo de escrita que, por vezes, é feito sem nos interrogarmos sobre qual poderá ser o seu significado e a sua recepção. E é isso que faz de uma biblioteca o lugar vivo que tem de ser.

É de Biografias que se Fala – Cidália Fernandes

Nuno Júdice nasceu na Mexilhoeira Grande, Algarve, em 1949. Formou-se em Filologia Românica pela Universidade Clássica de Lisboa. é professor associado da Universidade Nova de Lisboa, onde se doutorou em 1989, e autor de estudos sobre Teoria da Literatura e Literatura Portuguesa. entre 1997 e 2004 desempenhou as funções de Conselheiro Cultural e Diretor do Instituto Camões em Paris. Dirigiu, até 1999, a Revista Tabacaria da Casa Fernando Pessoa. Em 2009, assumiu a direção da Revista Colóquio-Letras da Fundação Calouste Gulbenkian. o seu primeiro livro de poesia – A Noção de Poema – foi publicado em 1972. Desde então tornou-se um dos mais notáveis e reconhecidos poetas portugueses, tendo recebido importantes prémios, em Portugal e no estrangeiro, onde está traduzido em muitas línguas. A sua vasta obra contempla ainda, além de poesia, ficção, ensaio e teatro.

Entrevista realizada no âmbito do programa cultural “Encontros com Autores” realizado pela Junta de Freguesia de Vila Meã