“Tudo que se passa no onde vivemos é em nós que se passa” – Bernardo Soares

A pedra basilar de todos os meus editoriais tem sido um aforismo, uma frase, um verso, o pensamento de alguém que continua a espalhar a sua sabedoria, apesar de ausente. Faço-o não só por respeito e paixão, mas também por gratidão, porque, se hoje escrevo é porque o seu exemplo, os seus livros, as suas palavras cimentaram a minha formação como pessoa. José Saramago refere que “Cada um de nós tem dois lugares, aquele onde nasceu e aquele onde vive”. A temática do lugar onde se vive, da terra onde se quer deixar raízes, tem preenchido a História com lutas e disputas territoriais hercúleas e terríveis, que envergonham a Humanidade (refira-se apenas uma, a mais recente, a mais mediática: a guerra entre a Rússia e a Ucrânia). Quanto ao lugar onde se nasce, podemos dizer que é também muito importante; sei que não é a primeira vez que o fazemos, mas deixemos que as palavras sejam afago e porta-voz daquela que aqui despertou para o mundo e desta terra falou e nela deixou a sua história, Agustina Bessa-Luís:

“Eu nasci em Vila Meã, que em tempos foi sede de concelho e perdeu o título como os campeões o perdem, menos os santos, que são campeões do amor de Cristo e têm patrono mais fiel do que os juízes deste mundo. Vila Meã, portanto, que cai de surpresa da estrada de Amarante para os lugares airosos de Travanca e de Real. Há outra Travanca, que foi onde viveu Pascoaes e que eu visitei há muitos anos a cavalo, por caminhos serranos e serpentinos onde a poesia se adornava de giestas brancas.

Em Vila Meã, na rua principal e coração da vila, eu nasci num domingo de chuva, às seis horas da tarde. A casa tem fachada que parece anexo do mosteiro de Las Huelgas, de tão ampla e solene. Ali vi o dia, que era, como disse, de chuva pegada. Ainda hoje gosto da chuva e quanto mais diluviosa melhor.

Minha mãe, que não teve dores de parto, queixava-se do barulho que ia nos armazéns, onde se acantonavam as vasilhas do vinho; pipas e almudes, cintados de ferro fresco e brilhantíssimo. Não nasci de padecimentos, mas de maneira sossegada. Ouvi cantar a chuva nas janelas, e um palhacinho vestido de seda, caixa de música que movia um guizo alegre e melodioso, deu-me as boas-vindas. Que melhor nascimento em terras de poetas antes de serem de nação afonsina? Não guardo má memória do meu nascimento, como podeis ver. Mais tarde aprendi o que a terra tinha para me ensinar. O horário dos tramways, chamados os tramas do Tua, e cujo silvo nos fazia prever o tempo. No outro lado da linha moravam os primos Bessa de Carvalho, se morar se chama a uma estadia em Setembro. Vinha-se de Lisboa gozar a província como quem vai a lugares santos. Eu admiro quem tem tal persistência e que da casa dos antepassados faz cruzeiro. Sou mais instável, quanto a moradas. Dizia-se que meu pai mudou dezanove vezes de casa. E ao dizê-lo à senhora Corine, que vive em Israel e escreve sobre mulheres escritoras, ela admirou-se, vendo no facto uma espécie de êxodo manso e sem tragédia e mais inexplicável por isso.

Um pouco acima da casa do meu nascimento está e sempre esteve a casa da Botica. Tem um alpendre sobre a estrada e lá viveram as melhores amigas que tive. Doces companhias de humor partilhado e festas de Verão. Ia-se a pé para toda a parte, até para a Lua, se ela estivesse a dez quilómetros de distância, o que era razoável para um satélite de tamanho regular. Um pó branco forrava os caminhos, os lódãos deixavam cair a sombra com singular amor pelos viajantes e via-se o guarda-chuva preto dos feirantes aparecer na curva e desaparecer nos pinhais, tragado pela escura e verde nave do arvoredo.

Vila Meã mudou e está hoje uma cidade que só visto. O campo da feira parece um arraial de muitas e boas casas, onde pode nascer, quando for caso disso, uma pessoa como eu e até melhor no fazer garatujas no papel entre pensativos descansos. Desapareceram muitos dos que eu conhecia; da casa do Marmoiral, que era casa erudita; da casa Sousa Soares, que era como para uma ópera à Britten. O primo Alberto, do ramo de direito, o primo Álvaro, do ramo de engenharia, já morreram. Gente com um quê de britânico e leve, snob, a bem dizer. A mãe deles era tão bonita que iam vê-la embarcar para o Porto no comboio das cinco e meia. Eu não a vi, mas diziam-me que sim.

Não sei se esta página vale como atestado de nascimento. Em Vila Meã e não noutro lugar. Se eu nascesse no Marão, era marana. Se eu fosse de Santarém, era escalabitana; mas sendo de Vila Meã, não sei o que sou. As pessoas antigas e de modesta ortografia chamavam-lhe Vila Manhã. Aí eu já me entendia e inscrevia-me como manhaneira na cédula pessoal. Qualquer coisa de rosados dedos, como a própria aurora. Assim, não são rosados mas manchados de tinta. Como se tocasse as nuvens baixas que sobre o berço vieram passar. E eu, contente, que o palhacinho de seda clara fazia ouvir o seu minuete em campainhas de prata.”

26-2-1997