Sem poesia, Prémio internacional

Perdoas-lhes, Senhor? Mas eles SABEM O QUE FAZEM

Adoro histórias. Ouvir histórias e contar histórias. Aliás, costumo apresentar-me mais como contadora de histórias do que como escritora. Um escritor é, sem dúvida, um mestre das histórias. Concedam-me, então, por favor, alguns minutos da vossa atenção para escutar/ler mais uma.

Era uma andorinha. Uma andorinha cuja missão era partilhar saberes, e gostava particularmente de o fazer através da literatura e da poesia. Um dia, quando dava a conhecer a vida e a obra de um poeta – que ironicamente tinha sido médico e escritor – um acidente inusitado condu-la à urgência do hospital. Não conseguia deixar de pensar na impossibilidade do que estava a acontecer. Parecia-lhe antes um pesadelo do qual em breve acordaria. As esperas desesperavam-na tanto como as dores e à medida que o corpo ia arrefecendo mais nítida era a sensação de desconforto.

Sofrera uma queda considerável. Queixava-se sobretudo da asa direita e da esquerda. Foi conduzida para a área de Cirurgia, depois para Clínica Geral, nunca para Ortopedia (note-se) e depois do RX constatou-se que tinha uma luxação na asa direita. Foi-lhe colocada então a seguinte questão: cinco horas de espera para ser anestesiada ou colocar a asa no lugar “a frio”. Não hesitou obviamente. Sentiu-se ligeiramente aliviada e pensou que o problema estaria resolvido, pois as dores acalmaram, sob efeito óbvio da medicação administrada. Novo RX, felizmente não havia órgãos internos danificados. Continuou em Cirurgia e apesar de continuar a queixar-se da asa esquerda ninguém lhe prestou atenção. Os que por ela passavam – ainda não se disse, mas encontrava-se no corredor – demitiam-se simplesmente dos seus deveres, e recebia respostas como: “Isso não é comigo” ou “tenha paciência” ou então indiferença pura. Quando lhe foi permitido ingerir algo, não havia chá naquele dia, e até a água da torneira teve de ser mendigada. Cerca de oito horas depois de ter entrado, teve alta com recomendação de voltar sete dias depois.

Alguns dias passaram. As dores e o desconforto obrigaram-na a procurar outra solução. Afinal, estava pior do que pensava e do que a leviandade dos responsáveis ditara: urgia fazer uma cirurgia, a asa esquerda estava partida em dois sítios e a direita em três.

A história está a chegar ao fim. Acrescente-se apenas que se encontra neste momento em recuperação, e tem vivenciado sentimentos pouco comuns numa andorinha amante da poesia, como ira, indignação e frustração; e a acrescentar à angústia da total dependência, a de não poder voar, misturada ainda com dores lancinantes quase sempre constantes.

Era apenas uma andorinha. Não merecem porventura ser tratadas todas do mesmo modo? Ou será este ninho um espaço hospitaleiro apenas para alguns?

Vozes ditas sábias sussurram que ninguém tem culpa, é a sorte, é o sistema, as fracas condições de trabalho que a tudo obrigam, os diretores sempre ocupados, que por sua vez recebem ordens dos ninhos mais altos onde vivem os grandes chefes, esses sem tempo para ninharias de moralidade. Muito bem. O que é que se conclui? Há uma consciência coletiva verdadeiramente difícil de controlar, sustentada por uma hierarquia social, e uma consciência individual. É nesta que pretendo focar-me. Quem se encontra em sofrimento precisa apenas da consciência individual do outro, da entrega, de um gesto, de um sorriso, de um copo de água para matar a sede. É assim tão difícil?

Neste momento, acho que já todos entenderam. Esta história é uma alegoria. Ocorreu não num espaço indeterminado, mas num espaço físico bem real, não com uma personagem fictícia, mas com uma pessoa autêntica.

Nota: as histórias são traiçoeiras, repetem-se, repetem-se, repetem-se.