As histórias continuam a ser o alicerce da humanidade. Além de lenitivo ou entretenimento, elas servem de refúgio também e muito particularmente em situações de crise. Ao longo dos séculos, a literatura tem registado alguns nomes associados a situações como a que vivenciamos. Cite-se O Decameron de Boccaccio, do século XIV, um conjunto de cem novelas contadas por jovens que se refugiam da peste negra, num castelo próximo de Florença; outro exemplo, mais próximo, é A Peste de Albert Camus, século XX, um relato pormenorizado da história de trabalhadores que descobrem a solidariedade no meio da peste. Deixo para último um autor, praticamente desconhecido, mas genuinamente português e que merece ser citado: Gonçalo Fernandes Trancoso, que escreveu o livro Contos e Histórias de Proveito e Exemplo, depois de ter perdido a família devido ao “mal que Deus nos livre”. Dedicou a obra à rainha D. Catarina e a primeira impressão surgiu em 1575. A que se apresenta é penas uma adaptação das quarenta e uma histórias que constituem o livro. A história fala para quem estiver recetivo. E por isso encerra muitas vezes uma moral.
Era uma vez um virtuoso ermitão que morava num ermo; alimentava-se de raízes, frutos, bebia a água das fontes; sentia-se livre. Um dia veio ter com ele um salteador de caminhos, e disse-lhe:
– Vós rogais a Deus por todos. Rogai-lhe que me tire deste mau ofício que tenho, senão mato-vos.
E afastava-se, mas tornava a fazer o mesmo que dantes. Pouco depois, regressava ao ermitão, dizendo:
– Vós rogais a Deus por todos. Rogai-lhe que me tire deste mau ofício que tenho, senão mato-vos.
Tantas vezes fez isto, que veio uma vez determinado a matar o padre, que lhe respondeu:
– Já que me queres matar, cavemos juntos a minha sepultura, e morto, lançar-me-ás dentro sem muito trabalho.
Ele aceitou, e assim foram ambos cavar. Porém, enquanto o salteador cavava o mais que podia para abrir o buraco, o padre ermitão cavava para que se fechasse, e desta maneira o trabalho não avançava. O salteador apercebeu-se do que estava a acontecer:
– Ora, ora, se vós não ajudais, como posso eu abri-la sozinho? Ainda que eu faça a minha parte, vós fazeis da vossa com que não aproveite o que faço.
Então o padre ermitão respondeu:
– Vês aí, irmão, o que eu te digo. De que me vale a mim rogar a Deus por ti, pedindo-Lhe que te tire do pecado e mau ofício que trazes, se tu não te queres tirar e estás muito de propósito perseverando nele?
“Contamos histórias a nós mesmos para poder viver.” – Joan Didion