Palavras sem obras

Mais um.

É este o primeiro pensamento que nos habita, quando tomamos conhecimento de que alguém se suicidou. Pensamos de imediato em qualificar as vítimas ou agentes como cobardes, medrosos, desencantados, desequilibrados, fracos mentais, e continuamos com a nossa vida, pois aparentemente o problema estará resolvido; as redes sociais, se se trata de uma figura púbica e conhecida e especialmente reiterada pela televisão, fazem alarde das suas capacidades e qualidades, insuflando piedade pelos que ficam. Sofre quem cá fica, dizia-se antigamente. Ontem soube que uma pessoa próxima, conhecida, se suicidara também. Quando a situação se avizinha, paramos para pensar. Somos obrigados a pensar.

O dia 10 de setembro foi instituído pela Organização Mundial de Saúde e pela Associação Internacional para a Prevenção do Suicídio como o Dia Mundial para a Prevenção do Suicídio, procurando chamar a atenção para este problema de saúde pública. Para o Cristianismo, é considerado um pecado (“Não matarás”), embora algumas figuras bíblicas tenham cometido suicídio, como Judas Iscariotes. Para o Budismo e para o Hinduísmo, o suicídio é desaprovado, pois ninguém pode destruir nenhuma forma de vida, incluindo a sua própria. Também para o Islamismo, o suicídio não é permitido, é visto como um sinal de descrença em Deus. Apesar de tudo, há seitas que aceitam o suicídio, como as seitas gnósticas da Antiguidade e da Idade Média e mais recentemente o Templo do Povo.

A literatura tem obviamente uma palavra a dizer. A nível internacional, retemos o nome de Ernest Hemingway (prémio nobel da literatura), e de Virgínia Woolf; o romance de Goethe, Werther, publicado no século XVIII, provocou uma onda de suicídios na Europa. A nível nacional, não podemos esquecer autores como Camilo Castelo Branco, Florbela Espanca e Antero de Quental. Mas todos eles deixaram uma pegada na história, marcas inequívocas de uma vida cheia de realizações, mas também de angústias, pesares, e fundamentalmente de incompreensões, muitas vezes reveladas subtilmente. Quantos anónimos não procederam já do mesmo modo, com a única diferença de não terem a oportunidade de encontrar alguém para os ouvir e de serem simplesmente esquecidos?

Depois do exposto, surge a questão: é legítima e compreensível esta atitude?

Obviamente que não existe apenas uma resposta, depende simplesmente de cada um. A única certeza que temos é que vivemos num mundo cada vez mais desenfreadamente egoísta, focado no ego e no bem-estar. Este contexto, ao contrário do que os líricos propagavam, veio agudizar o amor-próprio, o egotismo, o culto da imagem, a indiferença pelo outro (como se não estivéssemos todos interligados) e dela advém a depressão e o esgotamento, a doença cruel que mata mais silenciosamente do que uma pandemia.

O suicida

Não restará na noite uma só estrela.
Não restará a noite.
Morrerei e comigo irá a soma
Do intolerável universo.
Apagarei medalhas e pirâmides,
Os continentes e os rostos.
Apagarei a acumulação do passado.
Farei da história pó, do pó o pó.
Estou a olhar o último poente.
Oiço o último pássaro.
Lego o nada a ninguém.

Jorge Luís Borges, in “A Rosa Profunda”