Não é necessário pensar muito para se encontrar um tema para um editorial. Além das múltiplas abordagens relacionadas com a pandemia, muitas ricas em conteúdo informativo, outras em especulações e juízos de valor que atingem o absurdo, encontramos aquele que tem emocionado o país, penso, até à revolta. Refiro-me obviamente à violência e à crueldade perpetrada de um humano sobre outro humano. Nas histórias que costumo escrever, pinto um mundo em que os tiranos e os culpados são sempre castigados, vaticino um mundo onde os justos são salvos da incompreensão e da ignomínia. Aprendi na minha infância com os exemplos – gratidão sincera a tudo aquilo que me ensinaram. Porém, a vida continua a revelar-me o contrário. Afinal, nas histórias de verdade, a magia é poeira, e transforma-se em verdadeira dor, por isso tenho uma história para vos contar.
Era uma vez uma menina que não acreditava na magia. Apesar de viver numa casa normal como as outras, não conseguia encontrar o seu canto, o seu abrigo. Apesar de a família ser grande, com adultos e crianças e gritos e às vezes beijos, sentia-se muito sozinha. Apesar de gostar de brincar com os amigos e de se divertir no recreio com eles, e até de rir à gargalhada, no meio dos risos vertia lágrimas que dizia serem de alegria. Apesar de sentir que os gatos que adorava apreciavam os seus mimos, ela sentia-se escorraçada como um animal vadio.
Por isso, um dia, resolveu procurar o significado do seu nome; escreveu-o num enorme cartão branco e sentou-se mesmo em frente dele. De repente, sentiu que as letras ganhavam vida e se transformavam em gomas coloridas e saborosas. Era verdadeiramente mágico o que estava a acontecer.
A primeira letra era verde vivo, da cor da árvore da escola e da relva que pisava descalça e lhe fazia cócegas esquisitas. Mastigou, tinha o sabor da Violência. A segunda letra era amarela, da cor do sol, lembrava a areia da praia, o girassol no jardim da vizinha. Provou, soube-lhe a Agressividade. Associou a terceira letra à Páscoa, às vestes dos padres, ao pano lilás que se colocava no crucifixo, não sabia muito bem o significado, apenas sabia dizer que era uma cor bonita. Chegou-a aos lábios apenas, soube-lhe a lamentos, a choro, a Lágrimas.
A quarta letra era de um encarnado muito vivo, da cor do coração, dos lábios que pintava às escondidas da mãe. Passou a ponta da língua, porém ouviu aquela voz, uma voz muito perto em cima da sua cabeça, a acusá-la de ser Endiabrada.
A quinta e a oitava letras eram estranhamente negras, da cor do café. E também do chocolate, lembrou-se. Provou-as. Sabiam apenas a Negritude, a Nada. Rapidamente procurou a sexta, talvez tivesse mais sorte. Era direita como um poste, como um pau de gelado fresco e bom. Mal se encostou sentiu que uma onda de Tristeza desabava sobre ela. Era terrível. Procurou refúgio na sétima, de um azul índigo tão aparentemente reconfortante, mas sentiu-se cada vez mais Infeliz. Finalmente e completamente abatida, estendeu a mão para a palavra que se encontrava no final do seu nome; era azul. Azul do céu, do mar, dos seus olhos. Era a sua cor preferida. Ali, de nada lhe valeu. Tombou no chão completamente Apavorada. Nada vale um nome afinal. Nem uma pessoa. A pessoa nada é sem o nome. E quando o tem, vale como pessoa? A menina morreu.
É uma história triste esta. Bem diferente das que tenho contado. Sem magia, nem moral. Apenas a história de uma menina que se meteu no seu próprio nome e não se encontrou.